Relicário
Preciso consertar o meu rádio. Meu companheiro de um longo tempo já esquecido. É estranho parar de repente e não ouvir aquele "bom dia" seguido de uma canção. Meus sentidos acostumaram-se a isso. Na solidão dos cômodos poeris de minha antiga casa o consolo das vozes é o meu refúgio. Certas vezes pego o meu relicário, ele esconde todo o meu passado, minhas angústias, minhas saudades, meus amores perdidos, todos guardados, preenchendo aquele pequenino espaço. Minha vida sempre foi assim, um pedacinho aqui, outro ali, detalhes guardados com o gosto da lembrança. Vez ou outra uma peça fora do lugar, mas isso são consequências. Não nasci para viver intensamente, mudar de direção de repente, andar contra o vento. Minha vida sempre foi um constante de acontecimentos previsíveis, sempre no mesmo estágio de conservação. Não percebi o passar do tempo, não havia nada para perceber. Sempre as mesmices. A missa aos domingos é sagrada, e lá sempre estou, o passeio na praça ao fim da tarde, a rádio novela à noite, o terço antes de dormir... Esta é a rotina estabelecida a tempos em meu cotidiano.
Eu gosto da rotina, é um apoio, minha segurança. O tempo já cobra do meu corpo a sua paciência para comigo, já não sou uma jovenzinha sonhadora que vive a suspirar. Isso passou, a época dos amores também, todos perdidos, insatisfeitos, solitários. Amei de maneira triste, assim como vivi. E nestes momentos sinto a dor de algo que nunca possuí de fato. Sento-me na poltrona velha e surrada da sala de estar. Meus olhos se prendem, fixados na luz do abajur de cristal, herança de minha avó, e espero o destino me bater à porta. Não que eu tenha esperanças, mas serei honesta, esperar, para mim, nunca foi demais.